sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Ne-nhu-ma!

Já passava muito do meio-dia quando entrei no barzinho da esquina. A passos tímidos, vaguei por entre pratos e restos de comida e gente de barriga estufada até encontrar uma mesa desocupada. E foi uma bem no canto, encostada na janela. À direita, uma magnífica visão da parede lateral encardida do concorrente Gavião Lanches; à frente, uma mulher, sentada de costas pra mim. Mal sentei e o atendente já veio, com a caneta e o bloquinho a postos:
- Qual é o prato do dia? - perguntei.
- É peixe à Escabeche, batata cozida no vapor, arroz, feijão e salada.
- Mnn. Então vê pra mim uma a la minuta sem carne... - sempre pergunto qual é o prato do dia, e sempre fico com a mesma a la minuta sem carne. Talvez eu sinta alguma espécie de prazer inconsciente fingindo alguns instantes de hesitação em frente aos atendentes.
Feito o pedido, fiquei olhando por um tempinho pra parede do concorrente, depois pras pessoas passando na rua em frente ao concorrente (aqui é preciso deixar claro que eu estava, em verdade, numa estufa de vidro: as paredes a minha frente, à esquerda e à direita eram compostas por um aglomerado de pequenos quadrados de vidro com as juntas mal-pintadas de marrom claro, proporcionando uma visão panorâmica dos arredores). Passado o êxtase inicial da observação das coisas da rua, algo trouxe minha atenção pra mesa da frente:
- Moço, será que pode passar mais o franguinho dela? Assim, ó: quando começar a levantar aquele cheirinho de queimado já dá pra tirar da chapa...
- Claro, peço sim - e saiu, com o pratinho do bife de frango numa mão e uma pilha de louça suja na outra.

Isso que vou descrever agora se passou num intervalo de cerca de 20 segundos.
Após ouvir o pedido da outra, tão singular e estridente, comecei a analisar as duas que estavam na mesa da frente - duas, eram duas sim: a princípio, pensei que fosse apenas uma, solitária como eu; mas quando se elevou aquela voz, reparei na outra que estava atrás.
Observei que o local esvaziara quase que completamente enquanto estive distraída com a parede do Gavião Lanches e outras coisas cinzas da rua.
A moça que bloqueava a minha visão da outra era, de fato, enorme o suficiente pra encobrir a outra, quase raquítica. O status dela passou de mulher pra moça quando observei minuciosamente o braço dela: era alvo, gordo e pelancudo, mas não flácido: devia estar na mais tenra idade, certamente não passava dos 13. E a roupa que trajava comprovava a teoria: blusinha mimosa com manga bem curtinha de princesa, legging preta cheia de bolinha de porquice e All Star. O cabelo era castanho escuro.
A outra, não pude ver muito bem. Mas tinha cabelo quase completamente grisalho. Deduzi que fosse a mãe, mãe extemporânea.

Pois essa análise foi interrompida por outra voz, tão espalhafatosa quanto a da mãe extemporânea, que vinha de uma das mesas do centro:
- Ahh, frango tem que ser bem passado mesmo, né? Tem umas coisas que até dá meio cru, tipo carne de gado, mas frango e porco só bem-passado!, dizem que faz mal... e peixe também!
(nessa hora surgiu na minha mente um painel gigante com sushi sushi sushi reluzindo incessantemente em néon)
- É, e ela gosta bem passado - disse a outra, apontando com a cabeça pra massa exagerada de carne e gordura sentada a sua frente.
(meu pedido chega)
A do centro, animada com a resposta da outra, não calou mais a boca:
- Essas coisas cheias de gordura só fazem mal mesmo... Lá em casa, eu faço toda a comida sem uma gota de óleo: salada, arroz e tudo. Fritura?, nem pensar! Só assim, umas 2 vezes por ano eu saio pra comer uma a la minuta - e hoje é uma delas; por isso que consigo me manter assim e saudável.
Olhei pra ela, pra ver o que era o assim, mas não passava de uma encrenqueira de meia-idade meia-boca, magra mas nem tanto, deliciando-se com o fato de poder despejar um pouco de sua magnificência sobre 2 almas tão necessitadas - óbvio!
- Sabe quantas latas de óleo a gente gasta lá em casa por ano? - continuou.
- Quantas? - murmurou a outra, enquanto estraçalhava o bife no prato.
- Ne-nhu-ma! Dá pra acreditar? Só sei que eu me sinto bem melhor desde que cortei o óleo todo da comida. Bom, eu vou indo agora. Tchau!
- Tchau.
Catou a bolsa e saiu.
As outras 2, após poucos segundos de silêncio, continuaram a conversa - continuaram? Não sei, não tinha sequer ouvido a voz de alguma delas até o negócio do bife estourar. Falaram disso e daquilo, de como a que saiu era mentirosa e de como seria quando a guria começasse a namorar (e a grisalha irredutível, querendo preservar ao máximo a integridade da filhotinha), falaram falaram e foram embora.
Na mesa, ficou a garrafinha 600 ml de guaraná, suando de tão gelada, quase cheia. Ahh que eu teria pego se não tivesse entrado aquele bando de bocabertas e sentado bem ali nas mesas do lado: nessas horas é que eu percebo que ainda me resta um pingo de dignidade e respeito à propriedade privada.