quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Ellen e a máscara de ovo

Ellen desceu do ônibus exatamente às 6:47 da tarde. Ônibus lotado, como de costume; no horário de costume, com as roupas de costume. Caminhou até a porta do prédio, mais ou menos uma quadra longe da parada. Era estranho caminhar, ainda mais com a calça jeans frouxa como estava; na verdade, já havia algum tempo que sentia como se os fêmures estivessem desencaixando da bacia (e toda vez que pensava nisso, vinha-lhe à mente a imagem de um conjunto de coxa e sobre-coxa de frango cru - por que, afinal, era sempre ela quem tinha que comprar essas coisas num estranho lugar chamado Aves Decker, quando era criança). Mas a real verdade era que ela sempre teve um jeito de andar esquisito, e anos e anos andando dessa forma resultaram na tal sensação esquisita.
Subiu os 3 lances de escada e abriu a porta do apartamento: as gatas estavam esperando, como de costume: a preta e branca tentando sair pela porta aberta, a branca com manchas malhadas rolando no tapete da sala. 6:53, bem a tempo de assistir Grey's Anatomy. Tirou os tênis e as calças, encheu o pote de ração das gatas, e se atirou no sofá. Ligou a TV, e enquanto passavam os comerciais na tela, pensou no que faria durante as próximas horas; queria assistir ao seriado, depois ler, fazer exercícios e comer alguma coisa. Mas tinha a louça pra lavar, o que já vinha sendo adiado há uma semana. Sentiu uma espécie de gratidão à Sony quando o seriado começou e desviou seus pensamentos desse monte de coisas chatas - odiava estar de férias da faculdade e ainda assim não ter tempo pra quase nada e estar sempre cansada.
No intervalo, arrastou a bicicleta ergométrica até a sala - só assim conseguiria fazer ao menos alguma das coisas que havia planejado. Foi mais ou menos a essa altura da noite que surgiu a idéia de bater uma clara de ovo em neve e passá-la na cara, uma dessas coisas que passam em programas que dão dicas de beleza. Ela não lembrava onde havia visto isso, só lembrava que alguém tinha falado que servia como um bom lifting - como se ela soubesse o que significava lifting no mundo dos cosméticos.
Terminado o seriado, Ellen foi até a cozinha preparar seu lifting de clara de ovo, e aproveitou pra preparar um arroz enquanto as claras tornavam-se nevadas na batedeira. Esfregou o troço por toda a cara, colocou a tampa na panela de arroz, e foi até o computador dar uma fuçada pra passar o tempo. Mas o dito lifting fedia demais, e dava a sensação de plastificar a pele à medida que ia secando. Ela foi até o banheiro e lavou a cara, passou na cozinha e pegou a panela de arroz e uma colher. Quando estava chegando perto do sofá, alguém bateu à porta. Largou a panela no sofá, foi até a porta e espiou pelo olho mágico: era o síndico.
- Só um minuto - disse Ellen.
- Tudo bem - respondeu o síndico, com sua grave e sempre-cordial voz.
Foi até o cesto de roupa suja e catou a calça jeans. Perfeito: fedia a ovo (mesmo lavando a cara, o cheiro havia ficado impregnado, já que ela conseguira espalhar o troço de ovo em boa parte da franja) e estava toda suja e suada. Voltou até a porta, e ao abri-la deparou-se com o síndico e uma garota.
- Desculpa incomodar a essa hora - começou ele -, mas é que hoje de tarde essa jovem tava tomando banho e deixou cair o celular no pátio de vocês...
- Ah, sei... vocês só esperem um minuto, que vou ali fora pegar - respondeu Ellen.
Foi até a varanda, e voltou com 3 pedaços do que havia sido um V3 rosinha até alguma hora da tarde. Entregou-os à menina, que deixava transparecer a ansiedade no olhar e nos gestos; Ellen achou apropriado fazer algum comentário vago junto com a entrega dos cacos:
- Nossa, quebrou o vidro!, que pena...
- Muito obrigado, e desculpa o incômodo - disse o síndico, enquanto os dois se afastavam de sua porta.
Ellen fechou a porta e pensou: "Por deus, então existe mesmo gente que toma banho e deixa o celular na janela do banheiro?", começou a caminhar de volta pro sofá, "Tanto faz, também. Eu continuo gorda e insisto em jantar arroz, e ainda por cima fedo a ovo".

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

História de uma xícara

Oi ou boa noite: escolham.
Meu nome é Ellen e tenho algo a confessar: tô usando a mesma xícara há 3 dias. A mesma, com listras creme e verde-escuro. Uso, e depois encho de água; boto fora a água, e uso de novo - e assim é. Cereal, leite de soja com ovomaltine, chá e mel, e água de novo. E tem mais! - pasmem: também tô usando a mesma colher.
Minhas educadas e mais-cordiais condolências às pessoas que se sentiram moralmente ofendidas, mas tenho mais a declarar. Tento-me controlar obstinadamente pra resistir à tentação do ponto de exclamação. Sempre depreciei pontos de exclamação, até semana passada. Hoje me dei conta disso; todos os pontos exclamativos utilizados nos últimos dias transbordaram em minha memória, e me senti envergonhadíssima por te deixado a situação chegar a tal ponto: bom dia!, obrigada!, ligação no 607!, prezados colegas!, copo!, Clayton!, alô!, e tudo o que antes poderia ser expressado com um gentil ponto final ou final nenhum. Não que eu deseje ao ponto de exclamação o mesmo destino da desafortunada trema... o fato é que pessoas que abusam do ponto de exclamação sempre despertaram minha desconfiança: euforia demais, geralmente desnecessária. É um bom motivo pra começar a suspeitar que algo aconteceu comigo, algo de muito errado.
(continue acompanhando a trama, caro leitor. O que virá no próximo capítulo? Será que Ellen conseguirá abandonar os pontos de exclamação? Ou será que ela admitirá, finalmente, que o ponto de exclamação é a manifestação do desejo oculto reprimido que permanece atormentando seu subconsciente e passará a encerrar todas as frases com um trio de pontos de exclamação? Não percam!!!)