terça-feira, 10 de agosto de 2010

Para quem precisa partir

Acordei no meio da noite com o bater da janela escancarada. Estava de tal forma aninhado contra a parede que o cobertor amontoou-se sobre meu peito; levantei da cama sufocado e suado. Lá fora relampejava, e podia ouvir ao longe o silvar da tempestade que se aproximava. Eram 4:33 da madrugada. Na cama do canto, meu colega de quarto dormia tranqüilamente.
Estava apanhando a camiseta para ir até o banheiro quando ouvi passos no corredor. Receei sair imediatamente; esperei até que só pudesse ouvir o barulho dos carros-zumbis da madrugada na avenida cheia de luz que clareava o lixo e as feridas e as coisas que se escondem sob o azul poluído do dia. Sempre tive medo das criaturas da noite e ainda tenho, mesmo com todos esses 26 anos que acumulei. Abri devagar a porta do quarto - uma tentativa inútil de abafar o som da dobradiça enferrujada. O ranger da porta fez com que meu colega rolasse na cama e balbuciasse
- Preciso ir.
- Como? - perguntei
e não obtive resposta. As luzes do corredor estavam todas apagadas, o ar gelado e impessoal como o de um hospital, só que escuro; hospitais são doentiamente brancos, bem sei, mas ali naquela casa os corredores pareciam sempre úmidos e escuros - mesmo com as lâmpadas fluorescentes. Eu caminhava cautelosamente, tateando a passos cegos pelo escuro. Mesmo frio, mesmo sem camiseta, eu continuava suando;
lambi o suor que escorria pelo meu pulso: era ácido. Nesse momento alguém passou rapidamente por mim, silencioso como um gato. Não consegui reconhecer o vulto que se afastava na escuridão; parou a alguns metros e voltou-se em minha direção: era uma garota.
Continuei caminhando, e ela seguiu em frente; adiante, parou para verificar se eu ainda a estava acompanhando.
Aproximei-me dela, parada em frente aos elevadores do hall, e distingui em seu rosto pálido o brilho de dois olhos negros. Por poucos instantes a encarei; ela sustentou meu olhar até o fundo, impassível, para depois desviar e começar a descer os degraus da escada.
Não a conhecia, e portanto resolvi não segui-la. Fui até a sacada, e constatei surpreso que o maço de Marlboro e o isqueiro estavam no bolso da calça de moletom. Sentei numa das cadeiras e acendi um cigarro. Traguei a fumaça artificial e nauseante e traguei de novo e de novo para que a nicotina começasse a me amolecer. Não sinto um prazer genuíno, de carne e vício, no cigarro - mas fumo há alguns anos. desconfio que afeiçoei-me ao isolamento da fumaça dançante e à sinfonia solitária do cigarro, ao tempo virando fumaça; desconfio que gostei disso e fui continuando.
Fixei o olhar num ponto além do véu azul que cobria a sacada e empesteava minha visão, na lâmpada acesa do outro lado da rua; logo, via refletido na tela azul o brilho dos olhos que há pouco me haviam fitado à beira das escadas. O vento gelado já havia secado o suor do meu corpo. Senti o coração acelerado, e a lembrança da garota e de seu olhar mudo me inquietava. Olhei em direção à escadaria, esperando sem muita esperança que ela pudesse ter estado ali o tempo todo a me observar, ou que estivesse voltando para dizer alguma coisa na cumplicidade do silêncio escuro da madrugada.
Pus-me a traçar mentalmente o trajeto de volta ao quarto,
tentando imaginar o caminho que ela poderia ter feito,
querendo entender de onde teria surgido. Vi-me abrindo a porta, depois deitado sob o cobertor suado, revirando-me em sonhos de terras longe demais, e a vi ao meu lado, parada, os olhos negros e profundos como o universo. E diante de mim ressurgiu o sonho, que agora parecia-me familiar como se eu o tivesse sonhado desde sempre e o pudesse tocar e dançar - sempre com ela ao meu lado. Vi-a sentada ao meu lado num banco de pedra, apontando para uma árvore solitária em meio ao capinzal da planície; o vento fazia com que os capins dançassem e formassem ondas de
verde em fúria aplacada pelo
azul do céu. Sem falar nada, levantou e saiu correndo em direção à árvore. Rodopiou e saltitou em meio ao verde-infinito, e lá do meio gritou
- Veja como o azul e o verde se fundem após a árvore: você é meu azul.
Corri até a árvore para encontrá-la sentada sobre uma raiz gigantesca. Olhava para além de mim; em silêncio, apontou: o lugar onde estivemos sucumbia às labaredas do fogo devorador de capim. Senti o calor do fogo e meu corpo todo se aqueceu. quando olhei para ela, os olhos negros eram cheios de compreensão velada, e eu a quis e soube que ela também me queria. Ergueu-se e veio até mim, a boca entreaberta cheia
das coisas que tinha imaginado durante toda a existência e calado,
das coisas que sentia no fundo da alma,
a boca vermelha e os olhos negros. Empurrou-me para o chão e subiu no meu colo,
a boca vermelha e quente junto à minha,
sendo a minha,
sendo eu mesmo como nunca havia sido até então,
estando ali por inteiro sob o peso do universo infinito daqueles olhos que se fechavam, cúmplices meus.
Afastou-se de mim e disse
- Preciso partir.
Ouvi uma sinfonia vinda de longe; olhei em seus olhos e vi a luz do sol a brilhar. Ela apontou para o lugar de onde viemos, e outra vez disse
- Preciso partir.
As chamas estavam próximas demais e me faziam suar.
Abri os olhos e estava na sacada, o vento frio arrepiando minha pele e espalhando em gotículas a chuva fraca que antecede as tempestades. O barulho de vassoura dos garis na avenida vazia me fez voltar à realidade, mas a lembrança do sonho me fez estremecer. Já não sabia se tinha sonhado tudo e chegara até a sacada sonambulando, trêmulo em febre de inverno, ou se havia mesmo encarado tais olhos negros.
Olhei para o corredor vazio e escuro: tive medo de voltar para o quarto. e também não queria o branco opressor das lâmpadas. Caminhei lentamente até a escadaria e desci um lance.

Ela estava parada na sacada do 4º andar, contemplando as árvores da rua. Aproximei-me, cada passo medido cautelosamente, o suor brotando nas têmporas. Parei ao seu lado e toquei-lhe o ombro. Ela se esquivou, mas virou o rosto para olhar em meus olhos. e naqueles olhos negros vi que partilhávamos o mesmo mundo de medos e dores e cores. e quis lhe falar sobre as coisas todas, mas nenhuma palavra foi capaz de alcançar a imensidão disso tudo.
- Preciso partir. - ela disse.
Peguei sua mão: estava gelada e macia, e apertou forte de volta.
- Partir para onde? Qual é seu nome? - perguntei.
- Luiem é meu nome. Preciso partir. Há um peso que me persegue; algo que já foi, mas ainda atormenta e desfaz cada sorriso meu. Estive sonhando com você por muito tempo, e gostaria de poder ficar em cada sonho que estive, mas preciso partir.
Desvencilhou-se de minhas mãos e correu para desaparecer nas sombras da escadaria. Desci o mais rápido que pude até o 3º andar, procurei na sacada e no corredor - em vão. Fui até o outro andar e também não a encontrei, e por fim cheguei à portaria. Da salinha envidraçada o segurança me lançou um olhar interrogativo, e dei-me conta de que assim como estava, a cara amassada e a calça de moletom sem camisa àquela hora da madrugada, deveria estar parecendo um maníaco.

Não sei ao certo quanto tempo se passou desde então. Por vezes, é como se eu morasse nesta casa desde sempre, e desde sempre com Luiem ao meu lado, sentada no sofá do hall, apoiada no balcão da sacada, deitada em minha cama; por vezes, é como se nunca tivesse pertencido verdadeiramente a este lugar e jamais tivesse visto através de seus olhos.
Sonho todas as noites com ela, mas não tenho coragem para sair do quarto durante a madrugada. Por temer as criaturas e o escuro? não. por medo de que ela não exista. Às vezes eu a sinto, como se ela estivesse no quarto ao lado, como se pudesse ouvir sua voz sussurrando no vento antes do temporal. como se pudesse me entender.